
Tenho de admitir, não sei se me adapto a estes novos tempos. Eu sempre me considerei um ser progressista e critiquei pessoas que viviam imersas em uma penumbra de nostalgia. Sinto que esta penumbra aos poucos me envolve, já quase sinto como se estivesse lá. Sentado naquele lugar no tempo, quase podendo novamente me ver sem tempo para assistir o tempo passar.

Na minha época, as pessoas se conectavam em redes, através das quais elas podiam trocar todo tipo de informação de forma quase instantânea, sem limite de distância. Redes que nos entendiam e nos conheciam mais do que nós mesmos.

Na minha época, eu podia votar nos meus líderes e discutir com outras pessoas sobre as minhas decisões. Eu podia até não revelá-las, se assim eu desejasse.

Na minha época, o céu era azul, ás vezes malhado de branco, ás vezes banhado de ouro... ás vezes com um cinza escuro ele me sinalizava que talvez fosse melhor permanecer em casa e assistir um filme. E todo dia o céu desaparecia, se afastava para dar lugar à lua e às estrelas, as quais, na minha época, também traziam luz e inspiração para mentes inquietas.
Na minha época, aprendemos a iluminar nossas ruas permitindo uma vida noturna intensa. A ironia é que estas luzes da terra conseguiam apagar as luzes do céu.

Na minha época, o conhecimento se multiplicava como nunca antes, crianças surgiam com a sabedoria de monges, se vivia por mais tempo do que em qualquer outra época anterior. E com tanta vida, se vivia mais amores, mais dores, mais prazeres... felicidades... frustrações... tristezas...

Na minha época, assisti o fortalecimento de um deus por tanto tempo perseguido. Um deus cruel, que diferente dos demais, trazia mais perguntas que respostas. Estimulava a dúvida e a curiosidade. Para alcançá-lo foram criadas religiões, imperfeitas e injustas, fundadas na tentativa, erro, registro e repetição.
Apesar de tudo isso, a minha época não era perfeita: homens lutavam entre si em nome de seus deuses; o mar caprichoso eventualmente ainda mergulhava cidades inteiras embaixo de seus longos braços; o céu algumas vezes se tornava tóxico; algumas pessoas ainda insistiam em não respeitar diferenças de opinião; a internet ainda acontecia de "cair" e os smartphones ainda insistiam em deixarem se quebrar...

... mas mesmo assim, com tudo isso, minha época foi a melhor, pois foi a única que, ainda que descrita no passado, eu pertenço no presente.
