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domingo, 26 de julho de 2015

Na minha época...

               


     Tenho de admitir, não sei se me adapto a estes novos tempos. Eu sempre me considerei um ser progressista e critiquei pessoas que viviam imersas em uma penumbra de nostalgia. Sinto que esta penumbra aos poucos me envolve, já quase sinto como se estivesse lá. Sentado naquele lugar no tempo, quase podendo novamente me ver sem tempo para assistir o tempo passar.

     Na minha época, coisas impressionantes aconteciam, podíamos conversar com pessoas do outro lado do mundo, as vendo em um aparelho que cabia na palma da mão. Chamávamos esses aparelhos de smartphones. Umas coisinhas tão incríveis, faziam de tudo. Apenas não fritavam ovos, mas se você pedisse direito, ele realizaria o pedido para você. Tão espertos e inteligentes esses Smarts, que depois de alguns pedidos, você nem precisava mais lembrar, ele proporia para você.

     Na minha época, as pessoas se conectavam em redes, através das quais elas podiam trocar todo tipo de informação de forma quase instantânea, sem limite de distância. Redes que nos entendiam e nos conheciam mais do que nós mesmos.

     Na minha época, a minha sociedade já entendia o conceito de tolerância e respeito às diferenças. Existiam até leis que garantiam isso.
     Na minha época, eu podia votar nos meus líderes e discutir com outras pessoas sobre as minhas decisões. Eu podia até não revelá-las, se assim eu desejasse.

     Na minha época, pude dançar ao som de músicas escritas e cantadas por mulheres expondo a sua sexualidade. E homens inteligentes sabiam apreciar e respeitar (e curtir o batidão).

     Na minha época, o céu era azul, ás vezes malhado de branco, ás vezes banhado de ouro... ás vezes com um cinza escuro ele me sinalizava que talvez fosse melhor permanecer em casa e assistir um filme. E todo dia o céu desaparecia, se afastava para dar lugar à lua e às estrelas, as quais, na minha época, também traziam luz e inspiração para mentes inquietas.

     Na minha época, aprendemos a iluminar nossas ruas permitindo uma vida noturna intensa. A ironia é que estas luzes da terra conseguiam apagar as luzes do céu.
     Na minha época, o mar era grande, salgado e caprichoso. Sobre ele navegávamos com imensas naves, carregadas de bens, pessoas ou recursos minerais. Dominávamos os monstros outrora mitológicos e invencíveis que nele viviam.

     Na minha época, o conhecimento se multiplicava como nunca antes, crianças surgiam com a sabedoria de monges, se vivia por mais tempo do que em qualquer outra época anterior. E com tanta vida, se vivia mais amores, mais dores, mais prazeres... felicidades... frustrações... tristezas...


       Na minha época, assisti o fortalecimento de um deus por tanto tempo perseguido. Um deus cruel, que diferente dos demais, trazia mais perguntas que respostas. Estimulava a dúvida e a curiosidade. Para alcançá-lo foram criadas religiões, imperfeitas e injustas, fundadas na tentativa, erro, registro e repetição.


     Apesar de tudo isso, a minha época não era perfeita: homens lutavam entre si em nome de seus deuses; o mar caprichoso eventualmente ainda mergulhava cidades inteiras embaixo de seus longos braços; o céu algumas vezes se tornava tóxico; algumas pessoas ainda insistiam em não respeitar diferenças de opinião; a internet ainda acontecia de "cair" e os smartphones ainda insistiam em deixarem se quebrar...

    ... mas mesmo assim, com tudo isso, minha época foi a melhor, pois foi a única que, ainda que descrita no passado, eu pertenço no presente.






                     

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